sábado, 24 de junho de 2017

ESTÓRIAS CURIOSAS DA NOSSA HISTÓRIA (1)


O DESAIRE DE BADAJOZ : FERIDO NUMA PERNA, D. AFONSO HENRIQUES É APRISIONADO POR FERNANDO II DE LEÃO

Sabe-se, hoje, que o célebre bandoleiro Geraldo Geraldes -alcunhado «O Sem Pavor»- foi um agente provocador do nosso primeiro rei. Com efeito, o ardiloso conquistador da cidade de Évora mantinha relações secretas com D. Afonso Henriques, que o encorajava (pagando-lhe) a mover acções militares irregulares em certas regiões da Península ocupadas pelos árabes e sobre as quais os reis vizinhos de Leão e de Castela dispunham (graças a tratados firmados) do direito exclusivo de conquista.
Nessas circunstâncias, não é, pois, de admirar que Geraldo, o famoso cavaleiro-vilão, tenha beneficiado, em Portugal, da maior das impunidades. Pudera ! Geraldo Geraldes guardava para si e para os seus homens o produto das pilhagens, mas entregava as praças e castelos de que se ia apoderando a el-rei de Portugal. Que, depois, publicamente, fingia admoestar o mercenário e perdoar-lhe as suas tropelias, sem, contudo, devolver aos lesados as terras e bens assim conquistados.
Protegido dessa curiosa maneira, o «Sem Pavor» chegou a internar-se profundamente em território sarraceno, muito para lá da actual raia alentejana, e a levar a guerra a Trujillo ou a Badajoz, praças particularmente apetecidas por D. Afonso Henriques. Depois de ter tomado a primeira dessas praças em 1165, Geraldo Geraldes montou um apertado assédio a Badajoz, acabando por investi-la com sucesso, em 1169. Inesperadamente, o ladino e arrojado Geraldes foi apoiado nesta última acção de guerra contra os mouros de Badajoz pelas tropas reais e pelo próprio soberano português, que, encontrando-se, à época, em conflito aberto com seu genro, Fernando II de Leão, nem sequer tentou disfarçar, dessa vez, o irrespeito que lhe merecia a letra dos tratados.
Pouco depois da sua entrada em Badajoz e da brilhante vitória alcançada contra a respectiva guarnição muçulmana, os Portugueses foram surpreendidos pela brusca e inoportuna chegada das hostes leonesas diante da cidade ribeirinha do Guadiana. Hostes que a marchas forçadas para ali haviam convergido, logo que Fernando II tomou conhecimento das acções bélicas do seu irrequieto sogro em terras cuja posse ele, muito legitimamente, reivindicava.
Tendo, assim, passado da incómoda situação de triunfadores à de sitiados e perante a desproporção das forças em presença, que lhes era francamente desfavorável, D. Afonso I de Portugal, Geraldo Geraldes e os seus cavaleiros resolveram renunciar temporariamente à posse da praça e, ao mesmo tempo, sair airosamente da aventura. Nesse transe, os Portugueses evacuaram a cidadela de Badajoz, onde se encontravam cercados, e irromperam num tropel desenfreado pelo meio dos leoneses, procurando a salvação na fuga. Foi, pois, durante essa retirada precipitada que D. Afonso Henriques embateu violentamente com uma perna no ferrolho de uma das portas da fortificação e que, já em campo aberto, se foi estatelar numa seara de centeio. Ali foi socorrido, não pelos seus companheiros, que na confusão da fuga nem sequer se aperceberam do infausto acontecimento, mas pelos soldados inimigos, que constataram que el-rei de Portugal havia fracturado uma perna e, naturalmente, o aprisionaram.
Parece que ao ver-se capturado D. Afonso Henriques, o temível 'Ibn Errik' -pavor de toda a moirama- chorou como uma criança. De raiva e de impotência, sem dúvida. E que suplicou insistentemente a seu genro a graça de o libertar e mandar de volta às suas terras, mediante a entrega imediata de todas as praças e castelos que ele, rei de Portugal, havia conquistado à revelia da assinatura dos tratados estabelecidos entre as duas partes.
Rezam as crónicas que Fernando II se deixou comover pelas súplicas do seu encanecido sogro (que já contava, nessa época, a respeitável idade de 68 anos) e que, magnânimo, se 'contentou' com a devolução de 25 cidades, vilas e fortalezas anteriormente conquistadas pelos Portugueses aos árabes e a cuja posse o rei de Leão se julgava legitimamente com direito, como já fizemos menção. D. Afonso (que esteve detido pelo genro cerca de 2 meses) teve de entregar, igualmente, ao seu rival a cidade galega de Tui e territórios adjacentes e remeter-lhe, ainda, 20 preciosos cavalos de batalha e 15 azémolas carregadas com 3 000 kg de ouro ! O preço pago ao monarca leonês pelo resgate do Fundador da Nacionalidade foi, apesar das aparências, bastante leve, se comparado àquilo que, naquele tempo, se exigia em semelhantes circunstâncias.
Abrimos aqui um parêntese para informar os leitores impressionados pela grande quantidade de ouro vertido por D. Afonso I ao seu captor, que o rei de Portugal era um homem rico; e que, tal como os outros monarcas da sua época, alimentava o tesouro real com o produto dos saques das cidades e vilas que conquistava, com o ouro (moeda universal do tempo) dos resgates dos cativos abastados, com os impostos lançados sobre os concelhos, com o dinheiro proveniente de portagens, rendas, tributos, vendas de privilégios, etc. Além disso, o rei de Portugal tirava chorudos proventos das vastas e úberas terras de lavoura que possuía e que produziam excedentes de bens alimentares essenciais, nomeadamente cereais.
Prosseguimos, dizendo que, depois do vexante e improfíquo desastre de Badajoz, o fundador da dinastia de Borgonha nunca mais foi o mesmo homem. Ao que parece, o osso quebrado (provavelmento um fémur)  nunca se soldou convenientemente o que obrigou o rei a coxear e a sofrer desse aleijão para o resto da sua vida. D. Afonso Henriques -excepcional homem de acção- também nunca mais pôde montar a cavalo e esse facto frustrou-o, ensombrando-lhe a existência. Testemunhas coevas referiram que, na sequência do acidente sofrido em Badajoz, o rei, acabrunhado, passava horas a fio num cadeirão. E que quando necessitava absolutamente de se deslocar, o fazia ao colo de criados ou era transportado numa improvisada liteira. Situação insuportável, com toda a certeza, para quem, pouco tempo antes -de montante em punho- ainda passeava a sua aura de invencibilidade pelos campos de batalha do ocidente ibérico.
Apesar do dislate de Badajoz e das suas funestas consequências para o Reino e para a saúde e prestígio de D. Afonso Henriques, o soberano ainda sobreviveu (contrariamente àquilo que prognosticaram alguns dos seus contemporâneos) uma quinzena de anos. A sua quase lendária força anímica acabou por sobrepor-se, pouco a pouco, aos problemas de ordem física e psicológica gerados pela sua forçada inacção. O primeiro rei de Portugal viria a falecer em Coimbra, a 6 de Dezembro de 1185, indo a enterrar -por sua expressa vontade- no mosteiro de Santa Cruz daquela cidade. Antes, porém, de deixar este vale de lágrimas, o «Conquistador» ainda teve a ocasião de experimentar dois momentos de intensa alegria : o primeiro, quando pôde comprovar que o seu filho primogénito e herdeiro da coroa -o príncipe D. Sancho- lhe seguia as pisadas, revelando-se um destemido guerreiro e um político avisado, preocupado com a dilatação do território nacional e com a boa administração do Reino. O segundo momento de grande felicidade, surgiu-lhe quase no fim da vida, quando D. Afonso viu, enfim, reconhecida por Roma a sua dignidade real. Com efeito, pela bula 'Manifestis Probatum', datada de 23 de Maio de 1179, o Papa Alexandre III outorgou-lhe, oficialmente, o título de rei dos Portugueses. Título ao qual D. Afonso Henriques já fazia jus, desde aquele memorável ano de 1143, em que o imperador de Leão e Castela se viu constrangido a renunciar à sua suserania sobre o Condado Portucalense.

(MMS)


O cavaleiro representado neste selo comemorativo da conquista de Évora aos mouros é, certamente, o famoso Geraldo Geraldes, companheiro de armas do nosso primeiro rei.
A imagem de topo mostra a estátua que foi erguida, em Guimarães, a D. Afonso Henriques; que, segundo a tradição, terá nascido naquela cidade do Minho.

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