segunda-feira, 9 de outubro de 2017

AS MINHAS CRÓNICAS (6)


«O TERRAMOTO DE 1755 E A ENÉRGICA ACÇÃO DO FUTURO MARQUÊS DE POMBAL». Com este título, foram publicadas estas linhas (há já uns bons anitos, seguramente mais de 12),  num jornal de tiragem aleatória, vulgarizado em França (região de Paris) para as comunidades lusas ali emigradas. Aqui deixo esse texto na íntegra :

Naquela memorável data do 1º de Novembro de 1755 iria festejar-se em Lisboa, como aliás em todos os lugares do mundo católico, o dia de Todos os Santos. A manhã apresentava-se bonita, com um sol radioso a tingir de ouro a bela capital portuguesa, de cujo casario sobressaíam as torres altaneiras das suas igrejas e mosteiros e o vulto imponente das suas casas senhoriais.
Era sábado, mas devido à solenidade do evento, pouca gente trabalhava nesse dia. De manhã cedo, já milhares de lisboetas, envergando os seus trajes de festa, pejavam as ruas da baixa, para, pouco a pouco, se irem aglutinar nos largos fronteiros aos templos da sua cidade; de maneira a poderem, no momento oportuno, tomar lugar nos ditos locais de culto e ali assistir aos ofícios religiosos.
A essa hora, apenas se encontravam de pé os populares, a gente de condição humilde e industriosa, acostumada a levantar-se muito cedo para ganhar a vida no exercício de profissões artesanais ou ligadas ao pequeno comércio ambulante ou de retalho. Os fidalgos e os burgueses, esses acorreriam às igrejas mais tarde, já que, para não poderem ser confundidos com a plebe, as figuras nobre ou abastadas da cidade haviam adquirido o hábito de assistir às missas que se celebravam por volta do meio-dia.
O mar da Palha assemelhava-se, nessa manhã festiva, a um lago de plácidas e luminosas águas. Aqui e ali fundeavam navios nacionais e estrangeiros, que haviam engalanado os respectivos mastros com flâmulas e bandeiras, como a ocasião o exigia. As barcas dos pescadores, que, a essa hora matutina, entravam da faina na barra do Tejo, varavam nas praias de Lisboa para descarregarem peixe fresco, entre o alarido habitual da gente ribeirinha; que sempre acode ao regresso dos seus de maneira muito pouco recatada.
Enfim, o excelente clima outonal, a solenidade dos festejos que se avizinhavam e a boa disposição que caracterizava os lisboninos deixava antever um dia pacífico na vida da cidade e dos seus 200 000 moradores. Estava, porém, escrito no grande livro do destino que a velha Ulisseia sofreria, nesse dia, a maior e mais horrível tragédia da sua já longa História.
Faltavam cerca de quinze minutos para as 10 horas, quando, subitamente, se fez ouvir -por Lisboa inteira- um ruído abafado e estranho, que parecia brotar das entranhas da própria Terra. Alguns segundos depois desse curioso fenómeno se ter manifestado, a cidade era sacudida por tremores de uma extrema violência e os edifícios começavam a desabar sobre o povo apavorado. Os tectos e as paredes das igrejas, então repletas de fiéis, sepultavam, ao ruir, milhares de homens, mulheres e crianças. Nas ruas, muitas outras pessoas (entre as quais se encontrava gente que lograra sair incólume ou ligeiramente ferida dos templos) eram apanhadas pelo desmoronamento de edifícios que, um pouco por todo o lado, se desfaziam com espectacular estrondo. A poeira espessa e o fumo emanado dos milhares de focos de incêndio que, quase instantaneamente, se haviam acendido por toda a cidade -ocasionados, na maior parte das vezes, pelos círios das igrejas destruídas e pelas velas de oratórios particulares- multiplicavam a confusão reinante, fazendo, como é óbvio, novas e numerosas vítimas.
O primeiro abalo durou cerca de 6 minutos, que, como é natural, deviam ter parecido uma eternidade aos habitantes da capital portuguesa. Ainda mal refeitos da surpresa e do pânico, os lisboetas foram vítimas, pouco tempo depois, de um novo tremor de terra que, embora tenha durado 'somente' 3 minutos, foi ainda mais intenso e mais devastador do que o primeiro. Segundo o testemunho de vários sobreviventes, essa nova sacudidela sísmica acabou a desastrosa obra do abalo precedente, destruindo centenas de edifícios mais sólidos, que haviam resistido ao desastre inicial. Outras manifestações cataclísmicas ocorreram durante esse funesto dia, vindo agravar as perdas humanas e prejuízos materiais já sofridos e ampliar a confusão reinante.
Ao mesmo tempo que a terra tremia, um violento e arrasador maremoto submergiu a cidade baixa até às Portas de Santo.Antão. A violência das vagas foi de tal ordem, que vários navios de grande porte, até há pouco fundeados nas águas calmas do Tejo, foram depostos em terra firme, mais ou menos destroçados, a centenas de metros de distância do sítio onde haviam lançado ferro.
Em poucos minutos, a mais importante das cidades portuguesas fora praticamente reduzida a escombros e perdera muitos milhares dos seus habitantes. Entre 10 000, segundo as estimativas mais optimistas de alguns, e 80 000, conforme a contagem, provavelmente exagerada, de outras fontes. No desastre de 1755, perdeu-se, igualmente, um espólio monumental e cultural inestimável e insubstituível : 40 palácios fidalgos e respectivos recheios; 30 conventos e mosteiros; o sumptuoso paço patriarcal; o histórico arsenal de marinha; a célebre Bolsa do Trigo; a velhinha Casa da Índia -de tão nobres pergaminhos- onde se encontravam relatos valiosíssimos das navegações portuguesas de antanho; a chamada Livraria de D. João, com os seus 50 000 volumes manuscritos; o arquivo musical do fundador da dinastia dos Braganças, transferido havia pouco de Vila Viçosa e considerado, nessa época, o mais valioso da Europa; inúmeros templos, de entre os quais será justo destacar a bela igreja gótica do Carmo, etc.
No caos gerado por tão trágico acontecimento -o mais penoso, repetimos, da Histórica multissecular da cidade de Ulisses- apareceram, quase repentinamente, bandos de salteadores que, totalmente indiferentes ao drama, se aproveitaram da confusão gerada pelo sismo, para se entregarem a uma pilhagem vergonhosa dos bens alheios, chegando ao ponto de catar as indefesas vítimas do desastre (incluindo os cadáveres) de tudo aquilo que, a seus olhos, representasse algum valor negociável. Contra essa gente sem escrúpulos, tomou o futuro marquês de Pombal as enérgicas medidas que se impunham, mobilizando a tropa para lhes mover uma feroz perseguição. Diga-se que, quando esses meliantes se deixavam surpreender em flagrante delito de roubo, eram sumariamente julgados e logo enforcados em patíbulos, erguidos para o efeito em vários pontos da cidade-mártir.
Depois de ter «mandado sepultar os mortos», decidiu o activo 1º Ministro de D. José I «cuidar dos vivos», requisitando (tanto na própria cidade, como no exterior) a mão-de-obra necessária à urgente desobstruição das ruas de Lisboa. Para tanto, os magistrados municipais foram superiormente autorizados a mobilizar os vadios e a requerer pela força, se necessário, todos os outros desocupados, indispensáveis à realização dessa inadiável tarefa. Por decreto datado de 3 de Novembro de 1755, Sebastião José de Carvalho e Melo concedeu plenos poderes a um membro do seu governo (na ocorrência, o marquês de Alorna) para requisitar víveres nas duas margens do Tejo e, assim, resolver o delicado problema da distribuição de bens alimentares aos sobreviventes do maior cataclismo natural que alguma vez assolou o nosso país.
Um mês após a tragédia, o senhor Sebastião José mandava regular, através de carta régia, o preço dos materiais de construção e proibia o aumento da renda das casas que ficaram de pé, numa clara e inequívoca atitude de luta contra os especuladores; que, em tempo de crise, sempre se aproveitam das desgraças alheias para favorecer mesquinhos interesses pessoais. Depois disso, recorrendo às capacidades dos melhores urbanistas, engenheiros e arquitectos do seu tempo (entre os quais se contavam Eugénio dos Santos, Manuel da Maia, Carlos Mardel e, entre outros mais, Reinaldo Manuel), o homem providencial, o déspota esclarecido dava início à homérica reconstrução de Lisboa, a sacrificada capital do Reino de Portugal.
Apesar da má fé dos seus inimigos -e Sebastião José tinha muitos e perigosos adversários- que intrigavam junto do rei D. José, criticando sistematicamente tudo o que o seu chefe de governo empreendia, a verdade é que os trabalhos de reedificação da cidade avançavam a bom ritmo. A tal ponto, que o conde de Bacchi (então embaixador de França junto da corte portuguesa), homem que nutria, também ele, uma mal disfarçada antipatia por Carvalho e Melo, acabou por reconhecer (numa carta-relatório endereçada a Paris, cerca de um ano depois do sismo) que, afinal, o governante português não era tão incompetente como ele supusera e que até estava a dar execução ao plano de recuperação de Lisboa com muito saber e com grande firmeza de carácter.
A parte mais danificada da cidade foi reconstruída na base de um projecto muito ousado para a época. As velhas e insalubres ruelas da baixa lisboeta foram substituídas por artérias largas e arejadas, flanqueadas por sólidos prédios de alvenaria, compostos por dois ou três pisos. Dispostas em quarteirões de esquadria perfeita, essas casas seriam, depois, distribuídas pelos seus residentes (que, entretanto, haviam morado em desconfortáveis barracas), segundo as profissões por eles exercidas. Desse facto advêm os topónimos de certas artérias da capital, que ainda hoje conservam os nomes que lhes foram atribuídos naquele tempo : rua do Ouro e rua da Prata (onde se concentravam, naturalmente, os artífices e negociantes desses preciosos metais); rua dos Fanqueiros; rua dos Correeiros; rua dos Capelistas; rua dos Douradores; rua dos Sapateiros...
Enfim, a reconstrução de Lisboa foi executada com tão prodigiosa rapidez, que a Europa inteira ficou embasbacada com o facto e viu-se obrigada a reconhecer a competência do 1º Ministro de Portugal e o profissionalismo dos seus colaboradores. O mérito dessa grande obra recai, com efeito e muito justificadamente, sobre esse homem insigne, que receberia de el-rei D. José I -em 1770- o prestigioso título de marquês de Pombal. Homem que, aquando do cataclismo, trabalhara sem se poupar (chegando mesmo a pernoitar numa improvisada tenda, nos lugares sinistrados) para tentar, com a sua coragem, com a sua inteligência, com a sua abnegação, minorar os males dos lisboetas e da sua cidade, martirizados pelas incontroláveis forças da Natureza.
A acção de José Sebastião de Carvalho e Melo foi de tal modo meritória e decisiva, na sequência do memorável terramoto de 1755, que muitos anos depois da catástrofe ter ocorrido e do restauro de Lisboa, o escritor e viajante inglês Markus Cheke se referiria a esse homem -considerado, naquele tempo, como sendo um declarado adversário de Inglaterra e das suas instituições- do seguinte modo : «os decretos que preconizaram estas várias providências (o britânico referia-se, obviamente, às medidas tomadas pelo político português) saíam em nome do rei, mas eram ditados ou até escritos apenas por Pombal. A palavra 'génio' está muito desprezada e perdeu muito do seu valor, mas a actividade quase sobre-humana demonstrada por ele (Pombal) na ocasião do terramoto, pode justificar que se lhe chame génio, na verdadeira acepção da palavra. A sua acção durante a crise ficou para sempre gravada no espírito dos seus compatriotas».
E ficaremos por aqui, pois pensamos não poder prestar uma melhor e mais justa homenagem a essa grande figura da nossa História, que foi Sebastião José de Carvalho e Melo -1º marquês de Pombal- do que aquela que lhe prestou o insuspeito cidadão inglês Marcus Cheke.

(M.M.S.).



Devido a um contrariante lapso, esta 'crónica' está referenciada com o nº 6; quando, desta série, já aqui foram publicados uma dúzia de textos...

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